Revista Época nº 189 de 31 de Dezembro, 2001 / págs 106-108

SERIAM OS DJS ARTISTAS?

Os profissionais dos pickups não se limitam a animar festas - eles também
inventaram um conceito próprio de criação

Lauro Lisboa Garcia

O verão chegou com uma invasão de Djs brasileiros e internacionais em
festivais no litoral brasileiro, de Pernambuco a Santa Catarina. Eles estão
em toda parte, ocupando espaços que já foram do rock e da MPB em eventos
gigantescos. Hoje a maioria dos tops que viraram ídolos das pistas passou
para a categoria de produtores, criando música própria e não apenas animando
festas com discos alheios. O sucesso flagrante tem despertado a questão:
afinal, DJ também é artista? "Só quando vira produtor", diz Ramilson Maia,
que cumpre as duas funções. Maia alega que para arquitetar aquilo que os
detratores chamam de música de laboratório é preciso ter um mínimo de noção
musical, de tempo, compasso, métrica, entender de melodia. Como a imensa
maioria dos ídolos da MPB, Ramilson e outros tops DJs-produtores, como Mau
Mau e Patife, não estudaram nada disso, mas desenvolveram o conhecimento com
muita discotecagem em festas e clubes noturnos. É o caminho natural.
Baterista no passado, Renato Cohen, de 27 anos, fez o percurso inverso, mas
deu no mesmo resultado.

Todos têm sensibilidade para identificar cacofonias e criar seqüências
arrebatadoras que vão funcionar nas pistas. Seu trabalho hoje é bastante
valorizado. Podem cobrar entre R$ 600 e R$ 1.500 para tocar numa festa ou R$
3 mil para fazer o remix de uma música. São unânimes em afirmar que a
eletrônica é apenas mais um recurso. "Primeiro vem a idéia, depois as
máquinas", diz Cohen.

A discussão é antiga e remonta às experiências no campo da música erudita.
No final da década de 40, um grupo de músicos franceses, liderados por
Pierre Schaeffer, criou a música concreta, compondo a partir de ruídos
pré-gravados em fitas magnéticas. Na Alemanha dos anos 50, compositores como
Karlheinz Stockhausen e Herbert Eimert criaram a música eletroacústica,
fundindo experiências eletrônicas com a música concreta. No pop dos anos 70,
projetos como os do grupo Kraftwerk transformaram a música de maneira
irreversível. Nenhuma dessas atitudes progressistas passou sem contestação
do público e de críticos conservadores.

Nem sempre os truques que a tecnologia possibilita são perceptíveis aos
ouvidos comuns. Artistas ligados à MPB convencional, Lenine produziu com
Marcos Suzano, em 1993, o cultuado CD Olho de Peixe utilizando tão bem
recursos eletrônicos que ninguém duvida de que o disco seja acústico, porque
soa como tal. Mais explícita, a ex-rainha da axé music Daniela Mercury
radicalizou ao levar o tecno de Mau Mau ao Carnaval baiano e virou a mesa no
novo CD. "Não estou aproveitando a moda, só entrei num universo que ninguém
explorou", diz a cantora, de olho no futuro.

Sem tanto alarde, Ramilson Maia, de 32 anos, multiplica as atividades entre
os pickups e uma pquena, mas poderosa, aparelhagem de som acoplada ao
computador que mantém em casa. Passa horas aplicando os conhecimentos que
adquiriu discotecando músicas alheias para criar o próprio trabalho. A nova
produção, Drum and Bass Brazuca Vol. 1, toda bancada pelo próprio bolso,
acaba de sair. Parece fácil, mas não é para qualquer um. Ramilson, que
trabalha há 12 anos como DJ e há oito como produtor, mescla texturas que
cria no computador com idéias que repassa para amigos músicos reproduzirem
com instrumentos como baixo, bateria e teclado. Reprocessa as gravações e
recria frases inteiras no PC. "O que manda não é o equipamento, mas a
criatividade", diz. "Posso dar curso para um leigo, explicar como tudo
funciona, jogo o equipamento na mão dele. Quero ver esse cara fazer música.
Não faz", afirma.

O kit básico é composto de computador pessoal, teclado, sampler mesa de som
e duas caixas acústicas. Um bom programa de computador é o Logic, o
preferido da maioria, principalmente pela facilidade de uso, com canais
específicos para os timbres de cada instrumento. Isso ajuda, mas nada se faz
sem especialidade. "Basta um timbre de bumbo errado para a música ir
embora", diz Mau Mau, o maior expoente do tecno brasileiro, que tem
projetos-solo e com o grupo M4J. "Um equipamento simples pode fazer
maravilhas com criatividade", ensina.

DJ de repercussão internacional, Patife, de 25 anos, tem um método curioso
de criar. Sem saber tocar nenhum instrumento, cantarola as melodias e as
idéias de arranjos que lhe vêm à mente e pede para amigos músicos tocarem.
Depois desconstrói e reiventa tudo no computador. Conseguiu ótimos
resultados no recém-lançado CD Cool Steps - Drum'n'Bass Grooves, mesclando
compilação de música de outros com composições próprias em parcerias. "Não
uso sampler, prefiro compor", diz.

Nem todos reconhecem a legitimidade desses profissionais como artistas, mas
como técnicos. "Eles são um tipo de músico-compositor que brinca com o que
já existe, tem bom gosto, é talentoso, criativo, mas dizer que são criadores
é demais", diz a cantora Zizi Possi, uma das que vêem a cena de fora. "Ter
uma idéia de seqüências de notas não é ter a música pronta", rebate Renato
Cohen. Para ele é mais autoral o trabalho de um produtor de música
eletrônica que o de um cantor que grava sem ao menos conhecer o engenheiro
de som. A título de comparação, basta avaliar carreiras desorientadas como
as de Gal Costa e Edson Cordeiro, para concordar com Cohen.

Mais próxima da cena eletrônica, Marina Lima reconhece a autoria desse
relativamente novo conceito de criador musical. A cantora, há muito
familiriarizada com a linguagem digital, já submeteu algumas de suas músicas
a DJs de confiança, como Felipe Venâncio. No novo CD, Setembro, a parceria
está de volta em faixas remixadas para as pistas. "É uma reinterpretação
diferente de um conceito meu. É um trabalho artístico, sem dúvida. Até a
harmonia eles mudam, são muito criativos", diz.

Há evidências de sobra de que os DJs brasileiros já se tornaram hábeis em
criar músicas próprias de qualidade. Trabalhos como os de Mau Mau, Patife,
Marky e Ramilson são, além de tudo, respostas consistentes de brasilidade
sem reserva de mercado.

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